domingo, 20 de junho de 2010

Passageiros da Eternidade










Lembrei-me há dias num dos passeios nocturnos que o Galileu me impõe todos os dias e o céu estava povoado de pontos brilhantes e trémulos. É verdade, veio-me à lembrança essa nossa viagem às montanha e apesar de não termos visto as constelações de estrelas no firmamento, vieram-me à memória como se as tivesse olhado num canto da imaginação quando num momento de descanso olhava a majestade da Cabreira ao longe. Naqueles escassos minutos em que rodeei o jardim, refiz toda a nossa viagem à procura do desconhecido. Acreditem que estava com alguma ansiedade pois não sabia o que ia encontrar ao fim de tantos anos nem como seria um passeio rodeado de tantas pessoas quando nos anteriores éramos dois ou três onde pontificava o silêncio que engrandecia a solidão da paisagem.

Que a memória me traiu, logo descobri e que iria trair as expectativas também não demorei muito a aperceber-me. Restava ainda a esperança de poder entusiasmar os ânimos com alguma história que pudesse contar nos momentos de pausa, mas como se veria mais tarde, estes foram poucos e enquanto duraram vivi preocupado em tentar encontrar o caminho perdido. Olhava ainda para mim na tentativa de conhecer até onde me levariam as capacidades e a confiança só viria mais tarde, no segundo momento em que tivemos de vencer um longo patamar e descobri que conseguia ir para além do limite concentrando a atenção no caminho enquanto atrás de mim a Maria falava da Grécia e da ilha de Creta levando-me a memória 30 anos para trás quando um avião me trazia de regresso à pátria – fantástico, ainda há pátria – e avistei o espaço dessa espantosa civilização minóica enquanto mais à distância numa outra ilha a intolerância dos homens dividia dois povos. A Alexandrina escrevia um diário que não chegamos a conhecer e quando reparei o Miúdo aguentava-se com heroísmo de lenço verde na cabeça fazendo lembrar aqueles que por ou em nome de Deus vão sacrificando a vida, a deles e a dos outros. E assim com estes pensamentos quatro horas depois chegávamos ao nosso ponto mais alto e sem coragem para incentivar mais esforços propus o regresso.

Mas não é o fim.

Como já vos disse, há mais Gerês e vamos continuar. Temos esses treze quilómetros até aos Carris e se ainda formos capazes de vencer mais trezentos metros a subir chegamos ao ponto mais alto e então aí sim podemos olhar o mundo de uma janela, como se entrássemos na Catedral de Santa Sofia dessa Constantinopla medieval e olhássemos o céu pela cúpula como se o infinito estivesse na ponta de um telescópio. Pelo caminho talvez encontremos uma das escassas águias que planam pelo desfiladeiro em voos tristes e solitários de quem se sente à beira da extinção. Se puséssemos música seria um Requiem, o de Mozart que é o meu preferido, que ouvimos nas noites negras em que vemos as nossas paixões desaparecerem no horizonte e sentiríamos a ira de Deus castigar os nossos pecados por deixarmos que a fauna deste parque nacional vá lentamente sucumbindo. Falta-nos ainda subir até ao Muro onde poderemos ver o mar a 70 Kms. de distância e escutar o vento a bramir e sentir aquela frase de um amigo meu que escreveu ser dum tempo em que as mulheres apaixonadas traziam no olhar o grito das gaivotas à procura de alimento nas manhãs perdidas do litoral. Foi na descida que após um intenso e breve aguaceiro encontrei uma espectacular floresta de imensos tons verdes e vivos. No regresso percorremos a jeira por onde há dois mil anos as quadrigas romanas e as legiões uniam Bracara Augusta à asturiana Astorga. Por aqui se escaparam as forças francesas após as invasões fracassadas, e também, os liberais em fuga para o exílio. Esses que viriam a ser os guerreiros que morriam por qualquer coisa que amavam. Seguindo os marcos miliários descobriremos a albufeira de Vilarinho abrindo-se numa imensidade de azul de uma beleza inesquecível e se for num momento bom e as águas estiverem baixas atravessamos, para visitar as ruínas da aldeia que nascida dos estaleiros da estrada romana sucumbiu nas profundezas das águas e só de quando em vez nos olha do interior do seu silêncio. Com um pouco de tempo ainda chegamos à pequena aldeia de Brufe encrostada na serra já para as bandas de Bouro. Vencida a serrania e penetrando na Amarela vamos por terras da Manuela Marinho até à Ermida, ou da Joana pela Peneda dentro conhecer as brandas e Castro Laboreiro e descer ao longo do Lindoso onde a Lua em noites de lua cheia fica do tamanho de Júpiter. Será então a altura de viajarmos para mais longe ao encontro dos monges milenares de Pitões das Júnias, ver os relógios de sol, as aldeias comunais e descobrir a Fonte Fria nos limites da Galiza.
Agora o Rui fala-nos em viagens de dois dias o que acho bom, se for de tenda será óptimo e podemos pensar ir mais longe, quiçá explorar o Parque Natural de Montesinho para os lados de Bragança ou descer às Beiras e percorrer o circuito das aldeias históricas em torno de Sabugal, no limite desse Portugal de Duzentos onde se travavam as primeiras lutas pela independência, ou à volta dos séculos no Monte Jarmelo na Guarda ou ainda uma viagem pela aldeia dos Trinta em pleno Parque Natural da Serra da Estrela.
Bem, o que vos quero dizer, é que no regresso a casa com o Galileu, decidi voltar de novo aos meus passeios pelo Gerês, pelo que muito em breve lá estarei de novo, de preferência com todos, só que agora sem destino, para ninguém se sentir defraudado e disponível para as viagens que o Rui propõe, com excepção de Santiago porque esse caminho todos conhecem.
Setembro de 2003

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